05 maio 2006

Esquerdização?

Clóvis Rossi, na Folha de hoje:
De direitos e respostas
"Depois de alguns brucutus que ocuparam a subsecretaria de Estado para assuntos hemisféricos (na prática, as relações com a América Latina), o novo titular, Thomas Shannon, parece ter uma boa compreensão do que se passa no antigo (ou ainda?) quintal dos EUA.
Em vez de ver uma "onda esquerdista", que provoca urticária em tantas epidermes brasileiras e latino-americanas, Shannon diz, conforme relato do correspondente Sérgio Dávila na Folha de ontem, que foi a falta de resposta aos direitos da população a responsável pelo "surgimento de um novo populismo, especialmente na zona andina".
Ainda acrescentou, também corretamente, que, ao contrário do populismo do passado, a nova safra "leva consigo um certo nível de ressentimento social, o que é preocupante".Por partes, o que Shannon está dizendo é:
1 - Foi o fracasso das políticas ditas neoliberais ou propiciadas pelo Consenso de Washington o responsável pela ascensão de todos os governantes, digamos heterodoxos, que pipocaram na América Latina nos últimos anos.
Assim como o sentimento da maioria do eleitorado de que FHC fracassara ou desencantara fabricou Lula, o fracasso dos partidos venezuelanos tradicionais fabricou Chávez. A listagem poderia prosseguir ao infinito.
Não é, portanto, que o tal de povo latino-americano tenha virado da noite para o dia comunista, marxista, socialista, populista ou que "ista" você preferir. Não. Faltou "resposta aos direitos da população", na interpretação de Shannon, que pode ser tudo, mas de esquerda com certeza não é.
2 - Conseqüência natural da falta de respostas: ressentimento. Preocupante, como diz Shannon, mas explicável. Evo Morales e Hugo Chávez buscam respostas de uma forma, Lula, de outra, Kirchner, de outra. Preocupante mesmo será se caminhos diferentes derem em nada, como no passado recente e não tão recente."

Hora de despertar

Editorial da Folha de S. Paulo de hoje:
"Está em ruínas o projeto regional, centrado na Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), que foi a vedete da diplomacia de Luiz Inácio Lula da Silva para o subcontinente. O episódio Evo Morales, que inevitavelmente deixará seqüelas no relacionamento de Brasil e Bolívia, é apenas o ruído mais recente a contribuir para a cacofonia política vigente neste canto do planeta.
Lula, passada a fase ingênua da "liderança natural" brasileira na América do Sul, agora mais parece um apagado coadjuvante de Hugo Chávez. Mas a liderança do venezuelano é divisora; para cada amigo que faz, brota um inimigo. Acaba de retirar seu embaixador do Peru. Desta feita o mentor do "bolivarianismo" entrou em atrito ruidoso com o presidente peruano, Alejandro Toledo, e o candidato a sucedê-lo Alan García.
Chávez divide a Comunidade Andina, promove o Grande Gasoduto do Sul e o papel do venezuelano como incentivador da nacionalização assinada por Morales, contra o interesse brasileiro, está por ser contado.
Não cabe ao chefe de Estado brasileiro emprestar credibilidade a tais encenações diplomáticas. O país mais populoso e industrializado da América do Sul não pode se dar ao luxo de -acalantado pelo "flash-back" terceiro-mundista que assombra o Itamaraty- perder de vista as suas prioridades regionais.
O Mercosul está em frangalhos. Não bastasse o status especial dos argentinos para romper princípios do bloco, Washington, pragmática, agora oferece vantagens comerciais que estão arrancando o Uruguai e o Paraguai do projeto, enquanto Lula sonha com o encontro místico de Bolívar e JK. O Brasil é incapaz de encaminhar a resolução de um problema de fronteira entre Argentina e Uruguai sobre a instalação de fábricas de celulose. O Itamaraty não responde ao interesse crescente de empresários brasileiros de abrir mercado em nações desenvolvidas.
Passa da hora de Brasília despertar. Fará bem o Itamaraty se retomar a sua melhor tradição de pragmatismo, incentivando a sobreposição entre os interesses comerciais das empresas do país e as posições da política externa. Cumpre voltar ao básico no Mercosul: reconstruir as pontes dinamitadas do livre comércio no bloco e deixar de lado o projeto de união aduaneira (em que o grupo se comporta como uma só nação a fim de negociar com terceiros). É tempo também de ultrapassar os preconceitos ideológicos contra a Alca e o acordo com a União Européia e acelerar esses dois processos."

03 maio 2006

A diplomacia do trivial delirante

Brilhante Elio Gaspari, na Folha de S. Paulo de hoje:
"É do chanceler Celso Amorim o qualificativo 'nosso guia' para designar a clarividência diplomática de Lula. Bajulá-lo, elevando-o à condição de líder mundial, faz parte do ritual de oferendas-companheiras. O senador Aloizio Mercadante, por exemplo, escreveu que 'não há líder no planeta que não queira se reunir com ele para trocar idéias e percepções sobre a construção do futuro'. 'Em nossa região, a maioria dos chefes de Estado busca seu conselho.' Será que foi o caso de Evo Morales?
O pior é que Lula acredita nessas coisas. Rege uma política externa esportiva no método, exibicionista no ritual e desastrosa nos resultados. Nunca, desde que os obás Osenwede, do Benin, e Osinlokun, de Lagos, tornaram-se os primeiros chefes de Estado a reconhecer a nação brasileira, Pindorama andou tão encrencada nas relações com seus vizinhos. O Brasil se distanciou de quem deveria se aproximar (Argentina e Chile) e aproximou-se de quem devia se distanciar (Venezuela e Cuba). Perdeu tempo com países inúteis (Namíbia e Gabão) e oportunidades com aliados tradicionais (Uruguai e Paraguai).
Quando o secretário de Estado George Marshall chamou o embaixador George Kennan para planejar a recuperação da economia européia, pediu-lhe: 'Evite as trivialidades'. Lula faz o contrário: persegue uma autoglorificação trivial. Meteu-se a cabo eleitoral na eleição boliviana e associou-se a Evo Morales, que confisca o patrimônio de empresas brasileiras. Decidiu capturar a presidência da Organização Mundial do Comércio e seu chanceler desqualificou o candidato uruguaio. Atropelou na direção de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU e até hoje está em pé. A diplomacia fominha estimulou a galhofa do presidente argentino Néstor Kirchner, para quem Lula tinha candidato até a papa. (Era d. Cláudio Hummes.) Saiu pelo mundo articulando um imposto contra a pobreza. Resultou que a patuléia brasileira corre o risco de pagar taxas de embarque mais caras nos seus vôos internacionais. O presidente americano George Bush já disse que não aceita esse tipo de tunga em cima de seu povo miserável.
Pode-se fixar com precisão a ocasião em que Lula jogou no mar a oportunidade de desempenhar um papel politicamente relevante nas negociações internacionais. Ela se deu em janeiro do ano passado, quando a Argentina saiu sozinha brigando pela reestruturação de sua dívida externa. Pressionado pela servidão cosmopolita da ekipekonômika, 'nosso guia' foi incapaz de oferecer aos argentinos o conforto da cortesia. Pelo contrário, muita gente boa do governo brasileiro saiu a futricar pelos salões de Washington, defendendo a banca. Achavam que a reestruturação fracassaria. Deu certo.Enquanto 'nosso guia' acredita que redesenha o mapa geopolítico do mundo, o Mercosul (herança maldita do tucanato) vai a pique, comido pela borda por uma teia de acordos bilaterais da diplomacia comercial americana. Encantado com a política externa dos grandes empreiteiros, ratificou uma irresponsável dependência do gás boliviano. Não bastaram os confiscos de Saddam Hussein nos anos 80, os calotes da cleptocracia africana nos anos 90, muito menos as roubalheiras angolanas de hoje."